sexta-feira, 14 de junho de 2013

O Manifesto

Por Victor Martins para seu blog.

A imagem da câmera aérea da Paulista com a tropa de Choque em linha cercada por outros policiais e carros com suas sirenes ligadas na frente do bar que charmosamente frequento dificilmente vai se esvair da memória. A principal avenida de São Paulo – e, portanto, o centro comercial do país – lembrou os conflitos para os quais até já damos de ombro quando são exibidos em Cabul, Damasco, Cairo ou Istambul. Mas São Paulo não foi invadida por americanos, não tem conflitos religiosos históricos ou um governo pretensamente ditatorial e nem pensa em destruir seu principal parque. São Paulo é conservadora, estado e cidade, em que as classes maiores torcem o nariz para a ascensão das que vêm abaixo, e procura se conservar porque sente que a violência, de certa parte decorrente desta disparidade social, aumenta e bate à porta onde quer que esteja. Nestes anos bem depois da ditadura, São Paulo se acostumou a viver sob em estado de tortura sem uma polícia devidamente preparada para defender o seu povo. O povo se adaptou quase que por mimetismo.

Analisando friamente, é até normal que salte aos olhos a dimensão que estes protestos têm tomado. O paulistano, e o brasileiro de forma geral, não está nada habituado em reivindicar seus direitos de forma contundente. O país, aliás, é o último da América Latina a ver seu povo nas ruas lançando-se à luta. Quando o faz, é atabalhoado, e no caso de uma capital cuja população amarga anos e anos de fúria contida e remexida, a violência vem no estalar dos dedos face às primeiras ameaças como característica de animais atávicos. Porque todos somos estressados por natureza e abastecidos com uma série de casos que nos rebelam e indignam diariamente, de atos do governo a ladrões que tacam fogo em suas vítimas.

A manifestação da terça-feira passada e as primeiras desta semana reuniram um grupo predominante de jovens que partiu para o confronto com esta polícia aí e, em nome dos 20 centavos a menos no transporte público, destruiu justamente aquilo que defendia. Ali havia atos claros de vandalismo, por mais que os militares fossem seus espelhos; é como imaginar que, protestando pela saída de Marco Feliciano, agrida-se o tal deputado. Daí não ter sentido algum que o patrimônio público deixasse de estar à disposição não só daquele grupo queixante, mas por todos. Mas aqui e ali começou a se ouvir que tipo de infiltrados existia nestes revoltosos.

Esta quinta-feira foi elucidativa. Pedido de tantos, finalmente os eventos organizados em redes sociais passaram a ser reais e ganharam corpo, não sendo apenas compartilhamentos das fotos e postagens orgulhosas dos pseudomanifestantes. Ao reunir um lote considerável da população, veio à tona a revolta dos outros tantos que até podiam concordar com o aumento da passagem do transporte, mas que estavam aderindo a um grupo que tomou iniciativa contra este modelo de governo. Porque todos esperamos que alguém tome a iniciativa por natureza com medo de lutarmos sozinhos e pagarmos o preço ácido da derrota.

Os cartazes não se referiam somente à volta ao preço das tarifas, mas pediam que a polícia ou atue como agente defensor ou que permita o livre direito do grito e da passeata. No centro velho no Viaduto do Chá, as pessoas foram se reunindo. Só que, enfim, o tom era civilizado. Dos jornalistas Elio Gaspari e Bruno Bonsanti a outros tantos que vimos na velocidade das tuitadas, todos in loco, as informações eram uníssonas de que a paz era severamente recrutada. Houve quem a desrespeitasse – o fotógrafo de CartaCapital, o cabeludo que foi visto apanhando de cinco milicos, deu com a câmera fotográfica no capacete de um deles; as cassetadas foram evidentemente desmedidas. Mas tirando como exemplo os colegas, sete da Folha de S.Paulo, outro da CartaCapital e um do Terra apanharam e/ou foram detidos. Outros tantos tiveram de se virar, no exercício de seus trabalhos, para não pararem em DPs. Fica impossível contar com precisão as centenas que sofreram com as balas de borracha, o gás lacrimogêneo e os demais aparatos intimidatórios. Quem tinha vinagre era inimigo figadal do Estado, e o neo-DEOPS tratou com o rigor antigo.

O manifesto de hoje era tão válido e diferente que não se ouviu falar destruição de lojas ou bens públicos – apesar daqueles cinco ou seis que foram pichar o ônibus. Enquanto as TVs abertas e seus apresentadores sensacionalistas e mutantes apresentavam o protesto, a polícia tentou se conter; assim que os programas acabaram, o Choque chegou e a repressão tomou conta da Angélica, da Consolação, da Augusta e do destino final. Tantas foram as imagens dos despreparados borrifando pimenta nos olhos dos outros e algumas seguiam mostrando populares ajoelhados com a mão para cima, rendidos, porém alvos dos mesmos. Se muitos não conheciam a polícia que tinham, dizer prazer é meio antagônico. Mas não muda muito disso, e como também não está preparada para uma situação dessa, fez da Paulista aquela praça de guerra com tanques e balas. O vandalismo mudou de lado, e o vídeo a seguir é taxativo.



Quanto aos caras que deveriam evitar o celeuma, o dia também foi esclarecedor. Não que se esperasse outra coisa do governador Geraldo Alckmin, que fugiu para a Baixada Santista para comemorar os importantes 250 anos de José Bonifácio e dar o aval para tocar a Ponte Pênsil em São Vicente, passando ao largo do caos no Twitter como se não se tratasse do estado que teoricamente toca. O prefeito Fernando Haddad, então, mostrou-se um omisso de marca maior; dizer na calada da noite que se tratou de uma força desproporcional da polícia, meu caro, é só ir na óbvia opinião comum que é feita por eleitores, não pelo comandante da cidade. Seja qual for a corrente política ou partido, a conclusão também é clara de que estamos fodidos na mão de quem tende a reforçar esta polícia ridícula.

E igualmente ridícula é a postura dos jornalões desta terra que apoiaram declaradamente em seus editoriais o reforço policial com rigor – o conservador Estadão – e um inimaginável agendamento de manifestações para que o povo se programe, como se fosse construído um ‘protestódromo’ – a suposta e falsamente moderna Folha. Estes veículos que ainda são considerados por estas otoridades quando lhe convêm deram o aval para que os militares fossem bater em seus próprios repórteres. A salafrária Veja teve a capacidade de tratar os manifestantes desta noite como vândalos, omitindo que um dos seus jornalistas também foi vítima. Porque é fácil opinar em nome de seus veículos sem dar a cara a bater agora. Difícil é ir trazer a notícia no fronte com risco de levar borrachada.

Continuo sendo totalmente avesso a qualquer ato que provoque destruição à cidade ou culmine em violência. Mas com a vida severina que se leva aqui nas mãos deste modus operandi, a explosão do povo, no fim das contas, encontra plena razão. Que haja protestos todos os santos dias a partir de agora, organizados e pacíficos, com cada vez maior participação, e que durem o tempo que for preciso – o desta sexta-feira já está marcado, com hora e lugar. Estes grandes filhos da puta não podem sapatear na nossa cara. Estes grandes filhos da puta têm finalmente de nos ouvir, mudar, honrar o resultado do trabalho destas milhões de gentes honestas e dignas, das várias classes, credos e ideologias. Estes grandes filhos da puta já nos sugaram até o último fio de paz e vontade de permanecer nesta cidade, e nunca houve um momento tão propício nas últimas décadas para tirar a paz deles e brigar até o fim, nesta Revolta do Vinagre, para que a nova ditadura morra e não deixe raízes.

Estes grandiosos filhos da puta têm de nos dar as plenas condições de tranquilidade para beber a santa cerveja à noite no nosso bar. E a câmera aérea da Paulista há de registrar.

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